Como Cuba, que já foi país 'ateu', agora vê crescimento de evangélicos

  • 09/07/2025
(Foto: Reprodução)
Apesar de não haver dados oficiais sobre aumento dos evangélicos, especialistas dizem que a presença desses religiosos está crescendo na ilha. A Igreja Movimiento Apostólico Fuego y Dinámica del Espíritu Santo em Camagüey, Cuba; embora sem dados oficiais, entrevistados dizem que igrejas evangélicas estão crescendo no país. Reprodução/Facebook via BBC O relógio marca 19h20 em Havana, capital de Cuba. Em frente a um prédio que estampa uma foto de cerca de um metro de altura do revolucionário Ernesto Che Guevara, na Plaza del Cristo, no extremo oeste da cidade, um grupo de cubanos, em sua maioria jovens, reúne-se para fazer algo que era há até pouco tempo algo atípico na ilha: orar na rua. Com as mãos para cima, o grupo pede as bênçãos de Jesus por dias de prosperidade e força para uma luta do bem contra o mal. É um dos sinais mais visíveis de um fenômeno recente na ilha. ✅ Clique aqui para seguir o canal de notícias internacionais do g1 no WhatsApp Cuba, que já foi na prática um "Estado ateu", baseado na "concepção materialista científica do Universo", agora vê o crescimento de evangélicos, em meio à maior crise econômica do país dos últimos 30 anos. Embora não existam dados oficiais sobre o número de evangélicos no país, o consenso de especialistas aponta no mesmo sentido do que agora se vê nas ruas de Havana. "Sem dúvida temos visto um aumento [dos evangélicos em Cuba] nos últimos cinco anos", afirma o cubano Pedro Alvarez Sifontes, mestre em Estudos Sociais e Filosóficos da Religião pela Universidade de Havana e pesquisador assistente no Centro de Pesquisa Psicológica e Sociológica. Foi a crise de saúde pública compartilhada com o resto do mundo e o agravamento dos problemas econômicos particulares da ilha que fomentaram a adesão de milhares de cubanos, sobretudo jovens, às igrejas evangélicas, apontam entrevistados pela BBC News Brasil. "Depois da pandemia, a crise levou muito mais pessoas a se aproximarem da fé e das igrejas", diz o teólogo Eliecer Portal, evangélico batista que trabalha como guia turístico no interior do país. "Momentos de crise chamam as pessoas à fé, principalmente quando sentem que suas vidas estão em jogo." Fachada da Igreja Fuente de Vida em Havana; antes atípica, presença evangélica já pode ser percebida nas ruas de Cuba. Reprodução/Facebook via BBC Estado 'ateu' com herança católica Cuba não é uma sociedade estranha à religião. Colonizada por espanhóis, o país tem uma vasta herança católica, com milhares de igrejas e praças com nomes de santo espalhadas pelas cidades. Outras religiões de matriz africana, levadas pelos escravizados, também fizeram parte da vida cubana durante séculos. Porém, após a revolução socialista de 1959, liderada por Fidel Castro, Ernesto Che Guevara e Camilo Cienfuegos, o país caminhou em direção à interpretação soviética da doutrina marxista que distanciava o Estado — e, portanto, a população — da religião. Assim, a Constituição promulgada em 1976 previa que Cuba seria um Estado laico, sem religião predominante e oficial, e baseado na "concepção materialista científica do Universo". "A Constituição proclama a liberdade religiosa e o direito de praticar qualquer religião que se queira. Mas, depois disso, havia um artigo que dizia que o Estado era obrigado a propor e realizar todo o trabalho educacional baseado na concepção científica marxista-leninista", diz Pedro Sifontes. Segundo ele, além do apelo constitucional, foram criadas normas ateístas como parte intrínseca da educação e da cultura cubanas. "Por exemplo, no ensino superior, foi criada uma disciplina chamada Comunismo Científico. Essa disciplina recriou tudo o que era ateísmo científico e promulgou um positivismo neomarxista, o que não era a realidade da teoria de [Karl] Marx e [Friedrich] Engels", diz, em referência aos ideólogos do comunismo. Vídeos em alta no g1 À época, também foram criadas regulamentações que limitavam o acesso a crenças religiosas e a diferentes facetas da vida cotidiana. "Por exemplo, pessoas religiosas não podiam cursar certas áreas, como jornalismo; não podiam acessar cargos governamentais diretamente. Se você declarasse sua religião ou filiação religiosa, não teria acesso a cargos de liderança no governo", diz Sifontes. "Todos eram questionados sobre sua ascendência religiosa, para tudo. Para ser membro do Partido Comunista da Juventude, você também tinha que declarar seu status ateu, sua posição ateia. Se não, você não era admitido. E isso, claro, para nós, cria toda uma concepção de um Estado ateu." Apesar disso, a religiosidade continuou presente no cotidiano dos cubanos, que professavam suas crenças em pequenas igrejas ou residências. "O povo cubano nunca deixou de ser religioso. A Revolução, sabiamente, qualificou a santeria [uma religião de matriz africana, praticada em Cuba] de folclore, o que a livrou de preconceitos e perseguições", afirma Frei Betto, escritor e teólogo. "Fidel me disse que a Virgem do Cobre não é padroeira apenas dos católicos cubanos, mas de toda a nação. Nenhum país do continente americano recebeu tantas visitas de papas quanto Cuba — sendo quatro, considerando que Francisco esteve lá duas vezes." A aproximação do regime de Castro com a Igreja Católica, a partir da queda da União Soviética, abriu espaço para as instituições religiosas na "maior das Antilhas" — fenômeno celebrado por alguns como uma aproximação do regime ao liberalismo e criticado por outros como uma rendição de idealismo de Karl Marx à Igreja. Segundo Betto, "o Estado e o Partido comunista de Cuba eram oficialmente ateus até mudanças operadas na década de 1990", embora o governo revolucionário cubano sempre tenha convivido bem com todas as denominações religiosas — com exceção da Igreja Católica, que, no início, se opôs ao regime comunista. Após a Revolução, o governo cubano chegou a expulsar padres e nacionalizar escolas e meios de comunicação católicos. Em 1961, inclusive, Fidel Castro declarou a Igreja Católica como um dos agentes contrarrevolucionários do país. Visitas do papa Francisco a Cuba, como esta em 2015, consolidaram a aproximação da Igreja Católica com o país. Getty Images via BBC A tensa relação começou a arrefecer a partir de meados da década de 1990, intensificada com a visita do papa João Paulo 2º em janeiro de 1998, quando foi recebido com cerimônias públicas. Depois, as visitas do papa Francisco consolidaram a aproximação entre a Igreja Católica e o governo cubano. "Quando convenci Fidel do equívoco de não dialogar com os bispos católicos e da importância de erradicar o caráter ateu da Constituição e do estatuto do Partido Comunista, houve desconfiança de ambos lados no início do diálogo", diz Frei Betto. "Com a publicação do livro Fidel e a religião, as relações melhoraram e, hoje, o Estado cubano e Igreja Católica convivem com harmonia", avalia, referindo-se ao livro de sua autoria para o qual conversou com Fidel Castro sobre religião por 23 horas. Entretanto, segundo Pedro Sifontes, ocasionalmente ainda há tensões com membros da Igreja Católica. "Especialmente devido às ações de alguns padres que se posicionam dissidentes contra o governo cubano. Eles são uma pequena minoria, mas altamente visíveis nas redes sociais", diz. Há, também, críticas da Igreja Católica ao governo. "A Igreja em Cuba se autoproclamou a 'consciência crítica da sociedade cubana' e expressa periodicamente sua opinião por meio de cartas pastorais da Conferência dos Bispos Católicos de Cuba — a maioria das quais, em maior ou menor grau, bastante críticas ao governo cubano", afirma o pesquisador. A Constituição mais recente do país, aprovada em 2019, reconhece a garantia da liberdade religiosa, seja ela qual for. Fé frente à crise Igreja evangélica em Santa Clara; senso de pertencimento e música ajudam a atrair fiéis, diz especialista. Vinicius Pereira/BBC News Brasil As igrejas visitadas pela reportagem não fazem parte de qualquer congregação internacional, mas é possível encontrar outras instituições ligadas a congregações latinas ou americanas, responsáveis por introduzir o dogma pentecostal no país desde antes da Revolução. Agora, segundo especialistas, a ascensão dessas novas igrejas conta com a influência não só de religiosos estrangeiros, principalmente dos EUA, mas, também, das redes sociais. Pedro Sifontes destaca que, desde 2020, houve um aumento relevante do número de fieis dos movimentos pentecostais, neopentecostais e carismáticos. São referências a divisões do mundo evangélico, muitas delas com forte influência da produção acadêmica e que também estão sendo usadas em Cuba — como o próprio termo neopentecostalismo. No Brasil, os evangélicos costumam ser classificados em três vertentes: protestantes históricos; os pentecostais e os neopentecostais. Os históricos, como calvinistas, luteranos e anglicanos, estão mais ligados às práticas e crenças da origem do protestantismo. Já o pentecostalismo se expande a partir do século 20 com ênfase no Espírito Santo, que podia se revelar através de milagres e acontecimentos sobrenaturais. Um dos principais símbolos dessa corrente é a Assembleia de Deus. O termo neopentecostal, por sua vez, caracteriza igrejas surgidas depois dos anos 1950 — embora alguns autores falem mais no pós-1970. Elas enfatizam a guerra espiritual do bem contra o mal, tendem a ser mais flexíveis com a rigidez dos costumes e professam a Teologia da Prosperidade , professada por igrejas que associam a religiosidade a conquistas materiais e melhorias no estilo de vida. O teólogo Eliecer Portal, que já frequentou igrejas neopentecostais, acrescenta que a busca pela prosperidade em vida seduz muito dos jovens que procuram as novas igrejas cubanas. O fenômeno é visível pelas ruas. Nas ruas de Santa Clara, no interior de Cuba, ou da capital Havana, a reportagem presenciou homens e mulheres reunidos nas praças para orar. Há grandes igrejas em bairros periféricos e outras menores, mais próximas ao centro, instaladas no térreo das casas — que, mesmo quase caindo aos pedaços, mantêm uma estrutura digital para os cultos, como TVs e sistemas de som novos e completos. "Cuba é um país que não sabe o que quer. Ainda somos perseguidos, mas hoje já é possível buscar a nossa fé e a prosperidade. Afinal, o fim dos tempos está próximo e, por isso, muita gente está nos buscando", afirma um pastor, que preferiu se identificar apenas como Daniel, à reportagem. Sua igreja, nomeada Cristo Fuente de Vida, tem duas unidades, em Havana. Em uma delas, no bairro de Habana Vieja, Daniel promovia um café da manhã comunitário em uma manhã de domingo de abril. Dezenas de pessoas se apertavam em pequenos bancos para, depois do culto, desfrutar de produtos que apenas os supermercados privados comercializam na ilha. "As pessoas nos procuram para que possam ajudá-las a encontrar Cristo e salvar suas dores. Com Jesus no coração, tenho certeza que se iniciará uma época de prosperidade e fartura", diz o pastor. 'O fim dos tempos está próximo e, por isso, muita gente está nos buscando', argumenta o pastor Daniel, da Igreja Cristo Fuente de Vida. Vinicius Pereira/BBC News Brasil Para Delana Corazza, cientista social brasileira e pesquisadora do Observatório sobre os Neopentecostais na Política, as igrejas neopentecostais cubanas bebem da mesma metodologia encontrada em toda América Latina, muitas vezes contando com financiamento estrangeiro para oferecer conforto, esperança e senso de pertencimento. "As igrejas evangélicas têm uma metodologia que atrai muito: um espaço de acolhimento, de música, estética... Ali é uma válvula de escape. As pessoas se ajudam, há um caldo de pertencimento, de comunidade, que outros espaços não dão", afirma ela, que foi a Cuba estudar o fenômeno. De acordo com Pedro Alvarez Sifontes, não há qualquer censo religioso em Cuba dado que, para o governo, a prática religiosa é um ato individual e, portanto, não caberia qualquer tipo de investigação oficial do fenômeno. "Este é também um legado da política ateísta da Revolução até a década de 1990, quando foi feita uma retificação precisa dos erros cometidos. A relação entre religião e Estado melhorou consideravelmente, mas creio que ainda existem alguns preconceitos, desconhecimento e ideias preconcebidas que ainda limitam essas relações", diz. "Outra coisa que atrapalha é a capacidade bem cubana de pular de um grupo para outro, chegando a praticar várias religiões ao mesmo tempo." Disputa política Ainda segundo o pesquisador, em meio ao regime de partido único que Cuba adota, grupos evangélicos estão demonstrando uma atuação política mais forte — e mais à direita. Sifontes menciona como exemplo uma declaração publicada em dezembro de 2023 por 15 lideranças evangélicas sobre o conflito Hamas-Israel, divergindo do posicionamento majoritário do governo cubano. O texto condenou os ataques do Hamas naquele ano, afirmando que Israel tinha o direito de existir e "habitar a região que historicamente foi seu território por mais de mil anos, até ser expulsa como nação pelo Império Romano". Sifontes afirma que lideranças evangélicas têm se manifestado também sobre assuntos relativos ao gênero — mas "todos tentam ser cuidadosos" nesses posicionamentos, completa. Segundo Delana Corazza, as igrejas neopentecostais combateram duramente o Código das Famílias de Cuba, que legalizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo e reconheceu uniões civis homoafetivas. Ele foi aprovado em 2022. Outros debates frequentes na direita mundial também são discutidas agora nas igrejas em Cuba. "Começou um discurso do homeschooling em Cuba, em uma tentativa de pensar a privatização da educação, dado que, segundo eles, o Estado queria doutrinar a família. Há uma influência, não com a força do Brasil, dado que o Estado é muito organizado, mas você vê essa influência do conservadorismo", diz a pesquisadora. Há em Cuba desde grandes igrejas evangélicas em bairros periféricos às pequenas, instaladas no térreo das casas. Reprodução/Facebook via BBC Sifontes relata que em Cuba também há hostilidade de evangélicos com religiões de matriz africana — embora em "menor escala, mas com o mesmo potencial de ação" que no Brasil. "Nas redes sociais, há muitos exemplos de pastores atacando irresponsavelmente religiões cubanas de origem africana, usando frases depreciativas e até mesmo pedindo que seus direitos como expressão religiosa sejam negados", completa. Para Frei Betto, o surgimento dos neopentecostais como força política em Cuba é preocupante. "A maioria [das igrejas neopentecostais] se opõe à Revolução e se aproveita da atual crise do país para fomentar 'valores' do capitalismo, como individualismo e meritocracia", diz. "Mas, o regime, hoje, se aproxima do neoliberalismo por uma questão de sobrevivência da população, já que o bloqueio imposto pelos EUA e a inclusão, pela Casa Branca, de Cuba na lista dos países promotores de terrorismo, afetam profundamente a vida dos cubanos", opina.

FONTE: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2025/07/09/como-cuba-que-ja-foi-pais-ateu-agora-ve-crescimento-de-evangelicos.ghtml


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